É UM TEXTO GRANDE PORÉM MUITO INTERESSANTE QUE RETRATA MUITO BEM O LUTO NA PESSOA TRANSPLANTADA
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O Transplante Cardíaco evoluiu nos últimos 30 anos,
tornando-se uma verdadeira opção terapêutica, nos casos de insuficiência
cardíaca severa devido às afecções das artérias coronárias ou do
músculo cardíaco (miocardiopatias); i.e., está indicado para pacientes
cujos sintomas não respondem a terapêuticas medicamentosas ou cirúrgicas
de outra natureza. Considerada radical e como única alternativa à morte
a curto prazo, constitui para o paciente cardíaco uma série de desafios
e de tarefas adaptativas, com impacto físico e psicossocial
considerável .
A
Transplantação Cardíaca trata-se de um processo e não de um
acontecimento;
constituindo uma nova doença e não uma cura da doença cardíaca
actual. Após o T.C., o paciente passa a ser confrontado com
intermináveis procedimentos médicos relacionados com o Transplante
(acompanhamento médico contínuo e rigoroso exames, biopsias,
internamentos manutenção da medicação imunossupressora e seus efeitos
secundários
,
modificação do estilo de vida – dieta e exercício físico adequados)
que podem concorrer para a manutenção do papel da incapacidade,
sentido pelo indivíduo.
Desta forma, do estado de
moribundo na fase pré-transplante, passando pelo estádio terminal de
insuficiência cardíaca, até às várias ameaças da fase pós operatória, o
indivíduo tem que levar a cabo ajustamentos a várias perdas nos domínios
físico, psicológico, profissional e social.
Em termos sociais, o Transplante
Cardíaco é ainda encarado como um evento extraordinário que desperta
fantasias quase sobrenaturais na imaginação colectiva. Alguns pacientes
transplantados referem que são vistos pelos outros como únicos, quase
como criaturas místicas, o que não facilita a recuperação de um
bem-estar pleno.
A Transplantação Cardíaca representa
assim, claramente, num plano real e simbólico, a morte e a vida. As
ideias de morte provocadas pela doença cardíaca terminal, pelo
coração doente e disfuncional começam a caminhar lado a lado com a
perspectiva de uma nova oportunidade que adquire características de
ressurreição. Por outro lado, a constante ameaça da rejeição, a
incerteza do prognóstico a longo prazo, a aceitação psicológica
ambivalente do coração de outro indivíduo, são potenciais fontes de
perturbação emocional, fazendo do pós-transplante um período de grande
exigência psicológica.
REPRESENTAÇÃO COGNITIVA E FANTASMÁTICA DO CORAÇÃO
A
natureza simbólica do coração complica, na maioria das vezes, a sua
substituição. Este órgão, com as suas associações à vitalidade, às
emoções, à alma, à vida afectiva; contentor da vida emocional e da
personalidade foi imbuído ao longo da
História de qualidades espirituais e mitológicas. Esta extrema carga
simbólica dificulta o seu reinvestimento emocional pelo paciente e
gera, potencialmente, dificuldades na sua incorporação ,
fazendo do
Transplante Cardíaco o mais exigente em termos emocionais,
cognitivos e existenciais.
A representação cognitiva e
fantasmática dos órgãos internos adquire na transplantação uma
dinâmica de aceitação-rejeição biopsicológica ; a ameaça
percebida à integridade do
self interfere com a integração
fisiológica do novo coração, existindo alguns dados clínicos que
apontam que uma reacção intrapsíquica negativa e rejeitante vai
interferir no sucesso médico do Transplante. Daí, ser uma variável a
ter em conta, nos estudos psicossociais no Transplante Cardíaco,
ilustrada na citação seguinte: Comecei a sentir falta do meu coração.
Estava preocupado com o que tinha acontecido ao meu velho coração.
Tinha sido muito importante para mim, durante 40 anos; nasci, cresci,
fiz tudo com ele e, de repente, zás: deitavam-no fora.
DESAFIOS DO LUTO NA PESSOA TRANSPLANTADA CARDÍACA: PERDA VERSUS INCORPORAÇÃO
Ter
o coração de outra pessoa é uma experiência emocionalmente desafiante;
uma vez que envolve lidar com sentimentos ambivalentes face ao luto, em
várias vertentes. O paciente terá de fazer o luto da parte de si que se
tornou doente e que foi substituída por uma outra igual e estranha ao
mesmo tempo – o novo órgão. Torna-se
ainda necessário lidar com a situação de alguém que morre para lhe dar a
vida o dador (Alguém tem que morrer para eu viver).
Investigações
recentes sugerem que a necessidade de lidar com a perda física do
coração e a aceitação do coração do dador está na origem de stress
psicológico.
Segundo
Moos (1984), o processo psicológico de uma perda implica uma progressão:
de uma reacção inicial de dormência ou descrença, o paciente vai
experienciando uma crescente consciencialização de dor, tristeza,
raiva e preocupação para com o objecto perdido até à reorganização em
que a perda é aceite e o equilíbrio emocional é restaurado. Quando
se está perante uma situação de perda de uma parte do corpo vivencias
e uma restrição da imagem corporal
2 à
qual se associam sentimentos de depressão e luto. Na transplantação
cardíaca a essa perda associa-se ainda e, paradoxalmente, a adição de
uma parte do corpo. Neste caso, a imagem corporal expande-se e um
novo lugar psicológico tem que ser encontrado para essa nova
entidade que o corpo antigo agora contém .
Um
paciente transplantado há quatro anos refere: Tenho sempre isto na
cabeça
que não vivo com o meu coração e nunca mais será a mesma
coisa
.
Assim, no
período pós transplante, um dos maiores desafios do paciente, para
além da adesão à nova terapêutica imunossupressora, a todos os
procedimentos médicos e a um novo estilo de vida, o paciente terá que
aceitar o novo coração como seu. Este processo é geralmente mais
facilitado se o paciente pensar o coração como uma mera bomba,
destronando toda a carga simbólica que lhe é usualmente atribuída e
adquirindo apenas atributos de músculo bomba eficaz . Estudos prévios revelam que este processo
de Negação em relação ao órgão do dador, ao dador (é usual este ser
despersonalizado) ou a ambos, não é necessariamente disfuncional,
pelo contrário tem um papel adaptativo e protector no ajustamento
psicológico ao T.C. quando não existe nenhuma alternativa de uma
gestão de crise mais eficaz. Os seguintes
excertos de discursos de pacientes transplantados cardíacos ilustram
estas formas adaptativas: Um transplante cardíaco não é um transplante
de cérebro
não acho que me vá modificar. É como uma bomba de água num
carro; se se avaria, substituímo-la e o carro não deixa de ser o
mesmo
é o que o nosso coração faz, bombeia sangue.
Não vejo razão para falar da pessoa que me
deu o coração
não sei quem é nem me interessa saber; claro que me sinto
agradecida e tenho pena dos familiares mas nunca falo sobre isso. Não
faço perguntas sobre isso.
De
fato, o mecanismo de Negação revela-se o primeiro patamar de um
processo de luto e confrontar o paciente com a realidade, demasiado
cedo, pode não ter qualquer impacto terapêutico, sendo
inclusivamente, prejudicial ao sucesso da elaboração do luto . O transplantado cardíaco precisa de tempo para
realizar o processo de luto, elaborar a perda, lidar com o exigente
protocolo pós-operatório e reorganizar o
self. É necessário
disponibilizar espaço imagético para reintegrar o novo esquema
corporal; este movimento é lento e gradual e muitas vezes nunca
finalizado.
A ELABORAÇÃO
RACIONAL VERSUS MÁGICOSIMBÓLICA NO TRANSPLANTE CARDÍACO:
REPRESENTAÇÃO COGNITIVA E FANTASMÁTICA DO DADOR E DO SEU CORAÇÃO
O
fato de se tratar de um transplante de dador cadáver, mantendo-se o
anonimato origina, frequentemente, processos de idealização,
identificação, culpabilização e gratidão a ter em conta, que emergem
sobretudo no período pós-operatório. Assim, a pessoa transplantada
obriga-se, por necessidade absoluta, à construção de uma imagem
daquele que foi o seu dador; fantasia sobre as características
físicas e psicológicas de quem lhe deu vida (a sua idade, sexo, raça,
gostos musicais, crenças religiosas, talento artístico, profissão,
hobbies).
Neste processo de elaboração psíquica é frequente surgiram fenómenos
de idealização do dador, não só a nível físico, mas sobretudo a
nível moral (honestidade, generosidade, sabedoria) de acordo com
Inspector e col.. Torna-se imperativo valorizar a doação e o
dador e mensurar a dádiva. Quando estas imagens e
pensamentos sobre o dador e o órgão são positivos, tendem a diminuir os
transtornos psicológicos que se seguem ao transplante e o processo de
Luto tende a ser apaziguador . Há, inclusivamente, estudos que vão mais longe, referindo que o
órgão implantado apresenta menores índices de rejeição fisiológica , assistindo-se, portanto, a uma
diminuição da morbilidade e mortalidade destes pacientes . Por outro lado, há pacientes que tentam desvalorizar o processo
de doação, ignorando a origem do novo coração, através de um
processo cognitivo.
Embora, em Portugal, seja mantido o
anonimato em relação ao dador e à sua família, sendo de carácter
obrigatório, um estudo americano revelou que o facto de os pacientes
comunicarem com a família do dador, via carta e de forma anónima,
através do coordenador do Centro de Transplantação, os ajudava a
atribuir um significado a todo o processo de perda e de integração do
novo coração, favorecendo o
coping exigido no processo de
luto. Trata-se de um ritual que permite estabelecer um
contacto mínimo do paciente com a sua nova fonte de vida (neste
caso, os familiares próximos), emitir gratidão e reconhecimento,
permitindo-lhe um reinvestimento afectivo no seu novo coração, uma
reorganização do significado psicológico e de sentido da vida. De
facto, também na situação de Transplante Cardíaco se assiste à
necessidade de levar a cabo certos rituais fundamentais ao processo
de luto, tal como acontece na perda pela morte de alguém próximo.
Acordo, muitas vezes, a meio da noite e o meu pensamento vai para a
pessoa que morreu e me doou o seu coração
e é muito estranho não poder
agradecer a ninguém pela vida que me deu. Tenho que admitir que ainda
sofro por essa pessoa; penso muito nela.. Os mesmos autores referem, no entanto, que a identificação
do transplantado com o dador pode, em parte, ser minimizada se for
mantido o completo anonimato (inclusive face ao sexo e à idade). Em
suma, a gestão da informação sobre o dador do órgão, a ser fornecida
ao paciente continua a ser um problema na medicina de transplantação .
Os sentimentos de culpa pela morte do
dador emergem uma vez que alguém tem que morrer para que o T.C. possa
ser realizado. Tal como no luto pela perda de alguém querido, a
culpabilidade também se encontra presente.
Segundo alguns
autores, a sensação que alguns pacientes experimentam por terem
roubado uma parte vital do dador pode activar para além de sentimentos
de culpa, sentimentos de regressão, medo e fantasias de castigo ou
retaliação . Mais uma vez, aparece-nos o
pensamento mágico que faz com que o paciente se sinta responsável pela
morte do dador; como se o desejo pré-transplante de encontrar um dador
compatível se concretizasse e a culpa da morte do dador fosse da pessoa
transplantada. Estes pacientes que exibem sentimentos de culpabilização
apresentam sintomas mais elevados de ansiedade, paranóia, stress pós
traumático, hostilidade e psicose . Exibem,
desta forma um equilíbrio emocional muito precário que indicia um
processo de luto de prognóstico mais reservado.
Kuhn,
Davis, e Lippman, referem num estudo sobre aspectos
psicopatológicos dos pacientes transplantados cardíacos, que um terço
dos mesmos expressa fantasias de alteração de personalidade relacionadas
com o dador. Existem fantasias sobre a influência das características
físicas (idade e sexo) e psicológicas do dador sobre possíveis
transformações no receptor; como por exemplo, o sentimento de
rejuvenescimento quando se recebe um órgão de um dador jovem, a
convicção de que se vai adquirir características do outro sexo quando se
recebe um coração do sexo oposto: Tenho 51 anos e recebi o coração de
um jovem de 18
claro que fiquei novo
.
É
curioso realçar que em processos de luto comum pela morte de alguém, a
incorporação de características da pessoa falecida é também comum no
sobrevivente.
Segundo Inspector e col., existe um
dualismo, ao nível do processamento mental, que norteia a experiência de
receber o coração de outra pessoa: uma perspectiva mágico simbólica em
paralelo com uma perspectiva factual e fundamentada. Há pacientes que
consideram a possibilidade da transferência de características da
personalidade do dador, via coração (expressando desejos e/ou medos
mágicos nesse processo) para o paciente receptor. Estes aspectos
fantasiosos e metafóricos encontram-se presentes lado a lado com o
reconhecimento racional do coração enquanto bomba. Mais ainda, a
existência destas fantasias não se encontra relacionada com o nível
educacional, a etnia ou a evidência de psicopatologia no paciente
receptor. A concomitância entre o pensamento lógico e o pensamento
mágico é uma característica humana comum e enriquecedora da vida
psíquica.
No entanto, e apesar de toda a
conturbação psicológica e interna, neste período de pós-transplante
cardíaco, surge no paciente uma sensação de alívio; festeja-se o estar
vivo, o privilégio de ter aparecido um dador.
Numa
perspectiva fenomenológica, podemos dizer que é tempo de renascer e
recuperar a autonomia física, apesar do fantasma da dependência de um
tratamento eterno e da incerteza quanto a riscos futuros estar
sempre presente. Porém, há futuro. Um futuro em que o transplantado
cardíaco tem a oportunidade não só de corrigir (no sentido de
alterar) o seu estilo de vida mas de reconstruir o seu sentido de
vida, a sua história, a sua nova existência. E isto é no fundo, o que se
espera num processo de Luto bem resolvido.
Conseguir nascer de novo.